Não é uma pedra é um toco

Não é uma pedra é um toco
TOCO & COGUMELOS - COLONIA DE COGUMELOS - foto tirada durante caminhada de fim de semana - Guará novembro 2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O incêndio

Mês de março, mês das águas!

O som começou muito, muito baixo; depois foi alongando, chegando perto, muito perto mesmo. Abri os olhos, mas nada vi (apesar do barulho dos pingos da chuva que batiam forte no telhado e no calçamento de pedras, consegui, no entanto, identificar que eram sirenes do carro de bombeiro); lembrei-me então que há muito tempo tinha pegado o hábito de me cobrir por inteiro, deixando somente o nariz para fora da proteção do lençol. Isso começou a partir do dia em que acordei com marca de sangue seco que se estendia do lóbulo da orelha até o pescoço. “Virgem Maria, foi morcego!”- gritou a empregada.

O sobrado eu que morava era muito antigo, tinha tudo que uma construção antiga podia ter: O porão possuía vigias revestidas com grades de ferro posicionadas numa linha logo abaixo da soleira da porta, cujo acesso se dava através de uma escada que ficava no fundo da cozinha; o sótão, por sua vez não era tão bom para brincar quanto ao do vizinho. Enquanto que o meu era escuro e para subir era necessário esgueirar-se por uma escada estreita e íngreme; e também por causa do caimento do telhado não tinha uma boa altura, o que acabava dificultando a gente ficar de pé principalmente na parte mais próxima das bordas. Ao contrário, o dos Brandão era amplo; era claro por causa das três clarabóias; sua entrada estava localizada logo após o segundo patamar da escada que dava acesso à rua, o que facilitava as nossas incursões. Em resumo: não é aquela história que a “a grama do vizinho é mais verde”, mas lá era um lugar que servia para quase todo tipo de brincadeiras.

O som das sirenes estava alto; parecia até que vinha do sótão. Levantei-me; dirigi-me à sacada mais próxima; espie para baixo: nada... Mas, quando levantei os olhos na direção do horizonte vi o céu avermelhado pelas chamas que saiam pelas sacadas do prédio, que ficava a duas ruas da minha.

No dia seguinte eu e meus vizinhos Edson e Wilson da família Brandão, fomos olhar o que tinha restado do prédio. Dona Marly não deixou que a Zezé e o Haroldinho, os irmãos menores, nos acompanhassem, por receio que eles acabassem se machucando nos escombros do que um dia foi um armazém de atacados.

- Se não tivesse faltado água no caminhão dos bombeiros o prédio não teria acabado dessa maneira...
- É tudo por culpa do governo! (gritou um sujeito mais exaltado)

É insólito pensar que por causa da falta d água. Um prédio centenário tivesse virado cinzas. O que se via e aqui e ali ainda eram filetes de fumaça saindo do monte entulho: pedras, telhas, madeira, grades de ferro, cacos de azulejos, pedaços de blocos de cantaria era tudo que restou...

Esse armazém não era tão grande nem tão sortido quanto a “Mercearia Central” que ficava defronte dos nossos sobrados, mas dava pena em saber que todas aquelas guloseimas tinham virado fumaça. Depois de alguns dias já nem se falava mais sobre o assunto, e prosseguíamos com nossas lides de meninos: armando alçapão para pegar passarinhos, atirando de baladeira, nadando na maré da Praia Grande, brincando de esconde-esconde, fabricando espadas feitas com sobra de madeira, soltando papagaio, fazendo barco de jornal que soltávamos na rua em tempo chuva; que desciam ligeiros pelas ladeiras e, como nossos sonhos de infância, uns se desmanchavam ao serem puxados pelos redemoinhos da vida, outros porém, seguiam firmes por esse mundo de Deus.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O livro



Há tempos penso em escrever um livro. Entretanto tenho sérias dificuldades para começar e fechar o primeiro parágrafo. Tenho dúvidas sobre qual pessoa usar; se escrevo na primeira pessoa, pode parecer presunção da minha parte achar que tenho tanta coisa assim para contar; se utilizo a terceira pessoa, aí podem achar que sou uma daquelas pessoas que fica imiscuindo-se na vida dos outros: um xereta!
Também tentei me inspirar nos livros que fizeram parte da minha existência. Incluo nessa lista aqueles que li durante as minhas férias que passei no Barro Vermelho. Mas sem sucesso...
Não consegui ter nenhum insight. Lembro-me de que a estante que acomodava os livros lá na fazenda nem parecia a mesma que um dia esteve na biblioteca da casa em que morei na Rua dos Afogados: a madeira era reluzente e, mesmo estando fechada, podia-se ler, com facilidade, os títulos através das portas com detalhe em vidro transparente. A estante de mogno era cuidada com esmero pelas mãos da secretária de casa. Às sextas-feiras, era o dia em que todos os livros eram retirados e limpos com um espanador, depois voltavam para dentro na mesma ordem em que estavam anteriormente.
Na fazenda, entretanto, a velha estante não recebia esses mesmos cuidados: ela estava no primeiro cômodo da casa que dava para a BR sem asfalto, e o pó da piçarra vermelha entrava sem pedir licença, penetrando pelas frestas sem qualquer pudor. Quando eu não ia pescar nem caçar, ficava sentado no alpendre em companhia de algum livro da estante. Pegava o que vinha à mão; lia de Jorge Amado a Machado de Assis, de José de Alencar a Clarisse Lispector; li também livros que, tenho certeza hoje, não seriam recomendados para um menino daquela idade.
Creio que li prá mais de 100 títulos durante todos os anos em que passei as férias na fazenda, mas, mesmo tendo lido todos aqueles livros, nenhum deles me deu a chave do que eu procurava: Como escrever o primeiro parágrafo de um livro.

(Deixo aqui registrado meus agradecimentos ao amigo e professor de Português Alberto Kruklis, pela atenção em revisar o texto acima)